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O Eterno Brilho da Distopia dos Namorados

“Como é imensa a felicidade da virgem sem culpa.
Esquecendo o mundo, e pelo mundo sendo esquecida.
Brilho eterno de uma mente sem lembranças!
Cada prece é aceita, e cada desejo realizado;”

Este é um trecho traduzido de “Eloisa to Abelard”, poema do inglês Alexander Pope, citado no filme O Brilho Eterno de Uma Mente sem Lembranças, que mostra a história de dois namorados que, após amargarem um conturbado relacionamento, decidem apagar as memórias que possuem um do outro; contudo, a vida junta-os novamente, fazendo com que eles reiniciem um novo relacionamento sem saberem que ele já se conheciam antes.

Joel, após descobrir que Clementine, sua ex-namorada, o havia apagado totalmente da memória, decide procurar a clínica para fazer o mesmo procedimento que ela. Coincidentemente, ele o faz às vésperas do Dia dos Namorados, período em que a clínica Lacuna recebe sua maior demanda por esquecimento.

É interessante perceber o detalhe da alta procura pelo procedimento na referida data, que é marcada, para muitos, como algo bem ruim devido a términos recentes ou a pessoas que marcaram negativamente suas vidas sentimentais; ou, ainda, é, no mínimo, intrigante prestar atenção ao nome da clínica, “Lacuna”, que faz alusão àquilo que foi esquecido ou que, de alguma forma, foi deixado para trás.

O filme é cheio de mensagens, principalmente, através das falas das personagens, fazendo-nos refletir sobre nossos relacionamentos e nossas preces incessantes pelo esquecimento de alguém. Confira, abaixo, algumas dessas falas:

“Eu poderia morrer agora, estou tão feliz. Nunca senti isso antes. Estou exatamente onde queria estar.”

Como podemos ter um sentimento desse na companhia de alguém que, futuramente, desejaremos esquecer? A apreensão desse momento, como uma foto para o personagem, seria como a perfeição; o problema é que não somos perfeitos e, portanto, momentos imperfeitos se seguirão aos sublimes, ao lado dessa mesma pessoa com quem passamos instantes congeláveis.

Mas Clementine tinha essa consciência acerca de sua imperfeição:

“Sou uma pessoa louca, apenas querendo minha paz de espírito, não sou perfeita.”

Joel, muitas vezes, parecia estar à procura da pessoa perfeita para ele, pois ele era extremamente metódico e disciplinado, achando-se capaz de poder, em determinados momentos, adestrar a pessoa que lhe fazia suficientemente feliz em alguns aspectos.

E a felicidade parecia ser mais um ideal do que algo real, pois a própria Clementine havia refletido e chegado à seguinte conclusão:

“Os adultos são essa mistura de tristezas e fobias.”

Diferentemente dos bebês, que são como páginas em branco, os adultos possuem uma história e, com elas, traumas, manias, expectativas, desejos, preferências (pois não há mais muitas novidades a se experimentar) e exigências em geral. Somos um compilado do que há de pior para manter um relacionamento duradouro nos moldes atuais com a livre mobilidade de parceiros.

Muitas vezes, há falta de diálogo, e não porque falta um objeto para ser o assunto, mas sim porque falta compatibilidade social entre os dois; a forma de socialização deles não são compatíveis:

“Falar sem parar não é necessariamente se comunicar.”

Joel reclamava que ela falava muito e não dizia nada; mas ele, por outro lado, não abria a boca para tentar sustentar uma conversa. Seria ela uma matraca sem intelecto e ele, um anti-social entediado?

Às vezes, o background das pessoas, constituído no seio de uma família e/ou comunidade, tende a direcioná-las a valores e prioridades diferentes, constituindo aportes intelectuais e expertises divergentes, além dos diferentes hábitos de socialização e distintos níveis de tolerância em relação a um comportamento e outro. Enfim, é um emaranhado muito mais complexo que esse que, muitas vezes, resulta num sentimento de incompatibilidade social em relação ao outro, podendo ser suprida na cama ou, até mesmo, com outros entretenimentos e com a presença de outras pessoas, a fim de não deixar o relacionamento morrer. Ainda assim, a situação é bem mais complexa do que se possa descrever, e cada organismo é um organismo, dificultando a elaboração de uma análise geral.

Por fim, foi inquietante perceber o sacrifício e a dor do personagem Joel ao passar pelo procedimento de esquecimento. Ele, claramente, sofre ao perceber que ele estaria apagamento tanto os momentos ruins quanto os momentos bons, vindo, tardiamente, a mudar de ideia, preferindo ficar com as lembranças nocivas, percebendo que as boas faziam tudo ter valido a pena. Ademais, esquecer faria com que ele voltasse à estaca zero, sem ter aprendido com seus erros, de modo que ele não pudesse no futuro ter a opção de fazer tudo diferente.

“Abençoados os que esquecem, porque aproveitam até mesmo os seus equívocos”, Friedrich Nietzsche (1844-1900).


Mione Le Fay é carioca, formada em Jornalismo. Escritora, professora de informática, apresentadora e produtora de eventos. Apaixonada por livros e fotografias, encontra nesses nessas duas artes uma forma de mostrar tudo o que existe em seu mundo.

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