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Darren Aronofsky é um dos grandes nomes do cinema atual. Um dos meus cineastas favoritos de todos os tempos, o diretor ganhou destaque com maravilhosos filmes como “Pi”, “Réquiem Para Um Sonho”, “Fonte da Vida” e “O Lutador” – quatro obras-primas modernas para quem acompanha o cinema alternativo –, mas somente em 2010, com “Cisne Negro”, é que chamou atenção do mundo e do público geral. Lucrando mais de 300 milhões de dólares em cima de um orçamento de meros 13 milhões, “Cisne” foi um filme surpreendente para todos.

Eis que Aronofsky decide perseguir um velho sonho: adaptar o conto da Arca de Noé. Não é a primeira vez que ele tenta fazer um blockbuster; em 2006, lançou “Fonte da Vida”, que passou por inúmeros problemas de produção e acabou com o orçamento cortado pela metade, o que causou um grande flop de público e crítica. Mas devemos lembrar que o diretor ainda não era um famosinho em Hollywood. Agora, com a hype de “Cisne Negro”, Aronofsky pôde perseguir suas ideias com maior liberdade criativa e com um orçamento épico (!) de 125 milhões de dólares. A grande questão é: ele teve sucesso?

Confesso: em determinados momentos nos meses antes da estreia, cheguei a duvidar. Não de Aronofsky, mas do comprometimento do estúdio em deixar-lhe fazer seu trabalho. Dos cinco filmes que Aronofsky tinha feito até então, quatro estavam entre meus favoritos, até mesmo o famigerado e criticado “Fonte da Vida”, que pra mim é uma bela reflexão sobre vida e morte; o único que fica de fora da lista é “O Lutador”, que ainda assim é filmão, fortíssimo e emocionante. Em toda sua carreira, Aronofsky foi um diretor que gosta de desafiar suas audiências, e de nos tirar de nossas zonas de conforto, seja com o terrivelmente assustador “Pi” ou o terrivelmente triste “Réquiem Para Um Sonho”. E todos estes filmes tinham sido produzidos com baixo orçamento, o que garantia certa liberdade criativa para Aronofsky. Mas e “Noé”, que foi produzido com um orçamento altíssimo, ou seja, tinha a obrigação de agradar o público para garantir retorno financeiro? Como é que Aronofsky, um diretor que gosta de levar seus espectadores a lugares escuros, cruéis e sombrios, conseguiria criar um filme para o grande público?

E ele conseguiu? Sim. É claro que sim. “Noé” pode até ser um filme comercial, bom para se ver comendo pipoca num sábado à tarde, mas também é uma obra de arte incrivelmente emocional e impactante. Um épico à moda antiga, que lembra os filmes de sword-and-sandal das décadas de 1950 e 1960, “Noé” leva os espectadores a pensar e refletir sobre sua própria condição, e é um épico sobre humanidade e crueldade.

Antes de mais nada: caso você, espectador, esteja se perguntando se este é apenas mais um filme bíblico piegas e clichê, saiba que não. Darren Aronofsky é um homem que nasceu judeu e que hoje se considera ateu – mas, mesmo assim, ele não deixa suas crenças pessoais (ou a falta delas) interferir na sua visão artística: “Noé” é um filme que pode agradar cristãos, ateus ou qualquer tipo de público, mas, para ser entendido completamente, deve ser visto sem se levar em conta religião ou credo. É, como o próprio Aronofsky disse, “o filme bíblico menos bíblico já feito”. Inclusive, existem sequências que desafiam a fé – sem jamais ofendê-la, é claro. Não é um filme sobre Deus, inclusive, a palavra “Deus” sequer é mencionada. É um filme sobre o homem, sobre a natureza humana.

“Noé” é uma reflexão sobre o que nos torna humanos. Darren Aronofsky nos leva numa viagem sobre a maldade e a bondade da humanidade, e o que nos corrompe ao longo de nossas vidas. O bem pode existir numa raça tão destrutiva, tão mortal e tão cruel quanto a humanidade? Pode o ser humano ser bom quando já fez tantas maldades? “Noé” nos faz pensar sobre o que o coração do homem é feito. Misericórdia? Crueldade? Vida? Morte? Amor? Pecado? Bem? Mal? O que nos torna realmente humanos? E até onde teremos que ir para ser bons? Será que, para fazermos o bem, teremos que fazer o mal?

“Noé” cria inúmeras reflexões sobre o assunto, e, ao mesmo tempo, também se dedica a criar imagens fortes e empolgantes para o público. Visualmente, o filme é um espetáculo, embalado pela trilha sonora épica de Clint Mansell. As cenas de batalha, particularmente a do dilúvio, são absurdamente tensas e bem dirigidas – Darren Aronofsky, um diretor essencialmente dramático, dirige uma cena de ação melhor do que muitos Michael Bays por aí. Além disso, Aronofsky cria uma atmosfera bastante “clássica” para suas cenas, com muitos diálogos dramáticos e poucos, mas longos momentos de ação, lembrando os épicos dos anos 1940 e 1950 – inclusive, certos momentos fazem referências rápidas que somente os fãs do gênero conseguirão captar. Aronofsky ainda traz certas técnicas de seus filmes anteriores, tanto os cortes abruptos de “Pi” e “Réquiem” quanto a câmera de mão de “O Lutador” e “Cisne Negro”. Mas, como filme, “Noé” se aproxima mais da ambição de “Fonte de Vida”, que também criou maneirismos próprios e manipulou a imagem de maneira única. No caso de “Noé”, certos takes parecem fotografias, quadros de imagens dos personagens contra o céu do crepúsculo, uma possível metáfora às imagens bíblicas. E, agora falando especificamente para os fãs de Aronofsky: sabemos que todos os filmes do diretor retratam personagens principais obsessivos em relação a algum assunto. Pois bem, Noé é provavelmente o personagem mais obsessivo de toda a carreira de Aronofsky, chegando em certos momentos a ser cruel, violento e aterrorizante e rivalizando com o Max de “Pi”.

Não, “Noé” não é o melhor filme de Darren Aronofsky. A primeira empreitada de verdade do diretor no mundo dos blockbusters tem lá suas falhas, como algumas conveniências e o fato de que os primeiros trinta minutos do filme são “perdidos”, mas ainda é um ótimo épico à moda antiga e uma obra impactante. Eu diria que “Noé” é um “Aronofsky light”, menos intrusivo, menos desafiador, mais comercial e mais simples, muito mais simples que seus filmes anteriores, mas ainda assim impactante e memorável, e com algumas atuações  impressionantes, especialmente as de Russel Crowe no papel-título, Jennifer Connnely como sua esposa Naameh e Emma Watson como Ila. Hoje, o filme será muito criticado e causará muita polêmica por sua nova visão em cima de uma história bíblica. No futuro, porém, é provável que se torne um clássico épico e que seja lembrado por décadas. Muitas pessoas simplesmente não entenderão as inúmeras e belíssimas metáforas. Dói em mim ver alguém criticando, por exemplo, os anjos de pedra (uma das mais bonitas e geniais metáforas do filme, além de uma grande homenagem aos efeitos especiais de stop-motion dos anos 1970 e 1980, quando a computação gráfica ainda não dominava Hollywood). “Noé”, hoje, será apenas um sucesso de bilheteria subestimado pelo público – em alguns anos, porém, será uma das melhores memórias para o mundo cinematográfico moderno.

Nota: 8,5/10

PS: Caso vocês estejam se perguntando: sim, o filme criou uma explicação para os animais não terem começado a se comer dentro da Arca.

PS 2: Caso vocês assistam com atenção, podem também captar uma mensagem ambientalista, especialmente nas cenas iniciais.

PS 3: O mais genial em “Noé” é que o filme pode se passar em qualquer época, seja no passado ou no futuro. Atentem para determinadas cenas e poderão perceber isto.

Mione Le Fay é carioca, formada em Jornalismo. Escritora, professora de informática, apresentadora e produtora de eventos. Apaixonada por livros e fotografias, encontra nesses nessas duas artes uma forma de mostrar tudo o que existe em seu mundo.

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