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Segunda temporada de 3%: deixar o rico menos rico seria a solução? – O Grande Plano de Michele

A segunda temporada de 3%, lançada pela Netflix no dia 27 de Abril de 2018, já começou contrastando a alta tecnologia do Maralto com a pobreza do continente. Numa das primeiras cenas, também é mostrado o contraste da comida fresca dos 3% versus o “churrasquinho de rato” da população dos 97%. Isso seria injusto ou não? Para a Causa, o pessoal do Maralto era individualista e egoísta. Para o grupo privilegiado, o privilégio de pertencer aos 3% era uma questão de puro merecimento. Restava saber, no entanto, se a ideologia pregada na primeira temporada seria mantida pela série, a qual pregava que a verdadeira injustiça estava na transferência dos privilégios aos filhos, e não nos privilégios em si. Mas parece que a nova temporada foi além e, através da personagem Michele, firmou ainda mais seu caminho ao centro, não à direita nem à esquerda.

A Causa possuía um plano para boicotar os 3%: explodir o processo ocasionando a morte da cúpula do Maralto, matando culpados e inocentes num super atentado terrorista. Por outro lado, o alto comando do Maralto tinha o plano de infiltrar seu pessoal na Causa, prender e matar seus opositores. O interessante é perceber que ambos os lados eram adeptos à tortura, o que me fez lembrar uma fala do personagem Artur, no filme O Que é Isso Companheiro, a Fernando [Fernando Gabeira], que havia sido recrutado pelo movimento revolucionário MR-8 durante a ditadura militar: “vocês [os opositores] e os militares são as duas pontas da ferradura, parecem distantes mas, na verdade, estão bem próximos”.

Michele, a personagem principal, é o retrato dessa ideologia centrista. Já de início, a série mostrou o “não pertencimento” dela ao Maralto. Traduzindo: Michele estava indiferente aos privilégios e tecnologias do Maralto e, confirmando essa atitude, ela declarou que odiava tanto o Maralto quanto a Causa. Ela não se sentia, portanto, parte nem de um, nem de outro, fazendo de Michele a verdadeira cara e ideologia da série. No fim, Michele impede Rafael de boicotar o Maralto e faz um tratado com os conselheiros para que eles investissem no continente, construindo melhores condições para que eles progredissem, distribuindo a riqueza ao invés de distribuírem a pobreza, pois acabar com o Maralto não acabaria com as mazelas existentes. Ao contrário, acabar com o Maralto jogaria ainda mais gente na miséria.

Confira abaixo o ponto alto de cada episódio:

EPISÓDIO #1

Quando Joana faz um teste para entrar na Causa, Joana não passa na prova, porque, apesar de atingir o objetivo do teste, ela acaba sendo reprovada por ter não ajudado a concorrente. O líder da Causa diz que o teste não preconizava o individualismo tal qual era disseminado no processo. Traduzindo: isso era uma alfinetada na dura concorrência promovida pelo capitalismo entre seus agentes.

Outro momento interessante é quando uma pessoa da Causa diz para Joana: “Joana, você não vai morrer feito uma idiota”. E ela respondeu: “Mas não é o que vocês costumam fazer na Causa?”. Outra alfinetada, mas, dessa vez, contra os extremistas da esquerda.

Por fim, a intervenção militar é introduzida na série como a grande solução da manutenção da ordem. Qualquer semelhança com a intervenção militar no Rio de Janeiro é mera coincidência (?).

EPISÓDIO #2

Joana é colocada como a parte moderada da esquerda quando a série mostra a personagem lutando por um plano que não machucasse ninguém, pois, para ela, explodir o processo iria matar muita gente, quando que, na verdade, o ideal seria um plano sem mortes. Contudo, o líder da Causa retrucou dizendo que, sem isso, eles não conseguiriam nada (revelando o extremismo do movimento). Joana apenas disse: “vamos nos rebaixar a eles [do Maralto]”.

Outro ponto alto é quando Ezequiel fala para Michele [sobre o seu sentimento de não pertencimento ao Maralto]: “Se você não aproveitar, ninguém vai aproveitar por você”. O merecimento seria a chave para se sentir confortável em relação à ideia de que se deveria desfrutar da riqueza mesmo sabendo que a maioria estava abaixo da linha da pobreza (é claro que, até esse momento, o plano de Michele ainda era desconhecido).

O terceiro ponto superinteressante foi o curso preparatório para o processo, algo semelhante ao pré-vestibular da vida real. Mas, é claro, nem tudo seria à base de uma prova honesta:

“Quem estiver disposto a jogar mais sujo vai longe”. É uma possibilidade real, não é? Afinal, Existem muitos Rafaéis por aí…

EPISÓDIO #3

Fernando disse ao seu pai que ele havia aprendido uma coisa com o processo: “Uns com muitos e outros com tão pouco é normal”, na intenção de dizer que essa situação jamais deveria ser aceita como tal. Mas, seu pai, o pastor político do merecido e prometido Paraíso-Maralto, se punha totalmente a favor do processo e da exclusão, já que ele era adepto da ideia de que poucos, de fato, mereciam passar para o lado privilegiado. Em outro momento, Fernando declara: “O pessoal da igreja mente”.

Tendo sido intenção ou não do criador da série, essas questões político-religiosas acabam deixando margem para um possível paralelo entre a história de Adão e Eva e a história do casal fundador, cuja maçã, o primeiro pecado, tenha sido virar as costas para o povo. O pecado original: matar uma pessoa de centro, sendo eles os conhecedores do bem [a riqueza] e do mal [a pobreza].

EPISÓDIO #4

A ideologia da Causa ficou bem expressa na fala de um dos membros da Causa, Ivana, quando ela descobre que Rafael havia se apaixonado por uma mulher do lado inimigo: “Nossa vida é para a Causa, nosso amor é para a Causa”. É interessante perceber a semelhança com a filosofia do Partido Comunista à época de sua expansão. Tem até um livro, chamado Cisnes Selvagens, que conta bem essa progressão do partido na China e a frieza e dedicação dos seus agentes.

EPISÓDIO #5

“O Maralto é uma ilha de sedução. Qualquer ideologia se perde”: não é a primeira vez que a corrupção dos ideias causada pela riqueza se faz presente na distopia e na fantasia crítica (como a questão do anel do poder, metáfora para o dinheiro, na trilogia do Senhor dos Anéis). Ademais, é de senso comum que muitos esquerdistas passam à direita quando ascendem na sociedade (conforme já havia sido dito no outro artigo sobre a série , o conflito de classes vai apenas até a página 2).

“Você não é uma pessoa especial, Ezequiel”, disse o velho, um dos líderes da Causa, inferindo que Ezequiel não queria verdadeiramente fazer a revolução, pois no fundo no fundo o que ele queria de fato era fazer história – o que é bem comum entre pessoas que almejam a liderança.

“A Júlia se matou por causa da divisão dos mundos”: essa fala, sobre o suicídio da mulher de Ezequiel, mostrou a quebra da hipócrita felicidade plena, dádiva do Maralto. Puxando para o lado de uma discussão mais religiosa, essa fala poderia ser interpretada como se o Paraíso não fosse possível enquanto existissem homens, ou segregações.

EPISÓDIO #6

Sem dúvidas, o mais emocionante da série, o sexto episódio tem seu ponto alto ao apresentar o carnaval da população pobre do continente ao som da música do Cartola, Preciso Me Encontrar, em ritmo de samba, com a cantora trans Liniker. Um milhão de comentários e analogias poderiam ser feitos sobre a brilhante cena, mas, de tudo o que se poderia falar, vale a pena ressaltar que a busca pela felicidade é universal, que o carnaval é um investimento na felicidade daqueles que têm tão pouco e que o canto é livre. A escolha da cantora não poderia ter sido melhor se foi essa a intenção do criador do episódio: “Deixe-me ir, Preciso andar, vou por aí a procurar sorrir pra não chorar”.

Nesse ínterim, o pastor soltou uma fala também bem interessante (por incrível que pareça): “A maior beleza do processo é que ele é sobre o futuro”, revelando que, mesmo envenenado pela própria ideologia, no fundo no fundo ele, na verdade, precisava acreditar em algo, e, não sendo possível remediar o presente, sua esperança só poderia se remeter em relação a algo distante, sorrindo pra não chorar.

EPISÓDIO #7

Rafael revelou que nunca aceitou ter tido apenas uma só chance de entrar no Maralto e que por isso burlou as regras, provando mais uma vez representar aqueles que alcançam o sucesso por vias errôneas.

EPISÓDIO #8

A questão do merecimento e a cobrança da família são expressos na fala da mãe de Marco quando ela diz a ele: “Vê se faz por merecer”.

Joana diz a Silas, líder da Causa: “Vocês e eles são a mesma coisa”, inferindo mais uma vez que a sujeira e a injustiça estavam presentes nos dois lados.

EPISÓDIO #9

A prática de esquecer as origens foi introduzida pela primeira vez na série de forma bem clara quando um dos personagens, no Maralto, fala: “Tudo que é do continente fica para trás”, ilustrando, portanto, uma atitude bem comum entre os da classe emergente.

Mas o ponto alto mesmo foi quando a série mostrou no episódio como o Maralto foi criado, de maneira bem semelhante à preconizada pelo cientista Jacque Fresco e seu Projeto Vênus, em termos de tecnocentrismo. Um mundo perfeito construído por engenheiros.

Uma vez feito o Maralto, o casal, sob o argumento de que seria impossível levar a prosperidade a todos porque sempre haveria alguém desprivilegiado, acabou revelando, indiretamente, o conceito do Ótimo de Pareto, que é um conceito econômico que afirma não ser possível elevar a situação de alguém sem degradar a de outro.

EPISÓDIO #10

Finalmente, o plano de Michele foi revelado, mostrando que ela não era de esquerda (da Causa) nem de direita (do Maralto), pois ela teve a chance de prejudicar os dois lados e, no entanto, acabou preferindo fazer um acordo, elevando as condições de vida do continente sem que fosse preciso prejudicar os 3%.

É muito comum nos dias de hoje se falar em taxar grandes fortunas (o que levaria a uma fuga de dinheiro e do investimento, essenciais para gerar emprego e melhorar a economia para todos) ou, por outro lado, falar em merecimento dos privilégios (mesmo sabendo que o filho do pobre não teve as mesmas oportunidades que o filho do rico). Portanto, nenhum dos lados estão certos e combatê-los de maneira extremada não iria trazer benefícios para nenhum dos dois, pois, ao invés de distribuir a riqueza, distribuiria a miséria, como no caso de Cuba e da Venezuela.


Mione Le Fay é carioca, formada em Jornalismo. Escritora, professora de informática, apresentadora e produtora de eventos. Apaixonada por livros e fotografias, encontra nesses nessas duas artes uma forma de mostrar tudo o que existe em seu mundo.

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