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Um ônibus incendiado em uma estrada poeirenta serve de abrigo ao velho Tuahir e ao menino Muidinga, em fuga da guerra civil devastadora que grassa por toda parte em Moçambique. Como se sabe, depois de dez anos de guerra anticolonial (1965-1975), o país do sudeste africano viu-se às voltas com um longo e sangrento conflito interno que se estendeu de 1976 a 1992. O veículo está cheio de corpos carbonizados. Mas há também um outro corpo à beira da estrada, junto a uma mala que abriga os “cadernos de Kindzu”, o longo diário do morto em questão.

A partir daí, duas histórias são narradas paralelamente: a viagem de Tuahir e Muidinga e, em flashback,o percurso de Kindzu em busca dos naparamas, guerreiros tradicionais, abençoados pelos feiticeiros, que são, aos olhos do garoto, a única esperança contra os senhores da guerra.

Hoje, Mia Couto completa 62 anos e em homenagem decidi fazer essa resenha  desse livro inspirador.

Iniciamos a leitura conhecendo o jovem Muidinga e seu companheiro de estrada, o velho Tuahir. No decorrer das páginas descobrimos que Muidinga não possui qualquer parentesco com o velho. A criança, após uma doença que não é revelada no livro, esqueceu de todo o seu passado e de suas origens, estando assim, por conta do que é revelado aos poucos pelo Tuahir. Os dois, em busca de sobrevivência em meio a uma guerra civil, usam de um Machimbombo (ônibus velho) como abrigo. No meio de corpos carbonizados encontram um corpo desconhecido, que havia sido morto recentemente, junto a ele uma maleta.

Neste ponto, nosso livro toma um rumo diferente. A maleta pertencia a Kindzu – moçambicano, sobrevivente e escritor –, que relatou em poucos cadernos sua vida e a conflagração que passou. Certo dia, Kindzu parte em busca de um lugar melhor e quer encontrar seu irmão que até então está desaparecido. Seu falecido pai lhe aparece por meio de sonhos, dando conselhos e mostrando o caminho. O livro transita entre o poder do sonho, e a realidade. Marcado com pontos como a simbologia, folclore, crença, uma rica cultura. Mia Couto de uma certa forma, transforma seus personagens em metáforas para retratar a situação em que seu país se encontrava.

Esta incrível obra envolvente me fez sentir ingrata pela terra em que vivo. Pois, apesar de inúmeros problemas políticos e sociais, é com muita tristeza que coloco meu país no lugar de Moçambique. Me vi como mulher, minoria, senti o desespero que muitas viveram nesse livro. Em alguns trechos do livro podemos observar o quão indiferente e natural a violência contra a mulher é exposta. Palavras sendo conjuradas como “puta” e “prostituta” eram algo contínuo. Filhos sendo mortos ou retirados de seus pais, mulheres sendo estupradas, agredidas verbalmente e sendo colocadas como um objeto sexual. As mesmas não podiam nem cogitar em reagir. Em meio a uma guerra, quem iria escutá-las?

Em uma certa passagem, o velho Tuahir, passa um conselho para Muidinga, alertando para os perigos de se ter uma bela mulher em casa.

“…. Nem que fizesse como Rafaelão, seu primo familiar, que escolheu a moça mais bela, depois foi pondo defeito por cima de defeito. Um dia lhe riscava o rosto, outro lhe cortava os cabelos, outro ainda lhe queimava a pele…”

Certa de que meus leitores concordarão com cada palavra que irei dizer, muitas dúvidas ainda me cercam, com toda certeza não superei este livro e pretendo estudar mais a fundo essa temática. Fico descrente em saber que nada a mídia mundial fez, foi um verdadeiro abandono, descaso, omissão para com a população moçambicana. Que ficou à deriva de grupos extremistas durante anos a fio.

O que vocês acharam da resenha? Já leu o livro? Deixe sua opinião.
 

Mione Le Fay é carioca, formada em Jornalismo. Escritora, professora de informática, apresentadora e produtora de eventos. Apaixonada por livros e fotografias, encontra nesses nessas duas artes uma forma de mostrar tudo o que existe em seu mundo.

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  1. Uau Lorena!
    Uma história bem densa, não é mesmo? Adorei a sua resenha. Não conhecia o livro nem essa autora. Também estou buscando mais informações sobre outras culturas e saber que eles falam a mesma lingua que a nossa torna essa pesquisa bem mais fácil. Obrigada pela dica. Bjus

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