San Junipero: da morte ao Paraíso e do virtual ao coma social
Você também se surpreendeu com as músicas antigas, as roupas, os lugares estilo anos 80 e até com os fliperamas de 2 players? Pois é. Quem conhece a série Black Mirror sabe que ela, ao invés de nos transportar ao passado, sempre nos leva ao futuro. Contudo, o episódio San Junipero começou de maneira diferente e curiosa.
O ano é 1987. A tímida Yorkie vai, pela primeira vez, a um lugar jovem e badalado onde muitos estão lá só turistando, enquanto outros são residentes. O nome desse lugar é San Junipero, “uma cidade de festa”.
Ao entrar em um discoteca, Yorkie conhece a jovem descolada Kelly, a qual se atrai pelo jeito acanhado e “old fashion” de Yorkie. Esta, por sua vez, revela ter tido uma vida de muita repressão familiar, o que acaba explicando sua resistência em ceder aos encantos e assédios da extrovertida Kelly.
As duas possuem histórias bem diferentes e complicadas. Kelly, a mais irreverente, se declara ser uma bissexual que, fora de San Junipero, apesar de sempre ter tido atração por outras mulheres, nunca havia tido relações homoafetivas devido ao fato de ter sido apaixonada por seu marido (que, por alguma razão, a abandonara). Quanto a Yorkie, esta revelou que nunca havia feito nada com outra mulher (nem dentro nem fora de San Junipero) e que ela era noiva de alguém fora da cidade. Além disso, Yorkie disse também que era virgem até ter sua primeira relação com Kelly.
Ambas eram turistas em San Junipero.
É então que o episódio dá uma grande reviravolta… Na verdade, Yorkie não era jovem e tampouco vivia nos anos 80. Num futuro impreciso, ela era uma senhora que estava em coma por muitas décadas e que precisava se casar com alguém para que assinasse sua eutanásia, de modo que ela pudesse passar a ser uma residente permanente de San Junipero (um ambiente virtual, numa lógica parecida com a de Matrix, só que com a diferença de que, mesmo postumamente, a mente poderia permanecer conectada se assim fosse da vontade do “viajante”, passando ele a residente). Essa pessoa com quem ela iria se casar, na verdade, era o enfermeiro Greg, que faria essa gentileza por compaixão a Yorkie. Kelly, por outro lado, estava consciente e podia, por si só, escolher se iria ou não embarcar permanentemente para San Junipero após sua morte (ela tinha mais três meses de vida aproximadamente).
Num dado momento, Kelly (no mundo real, velha) visitou o hospital onde Yorkie estava internada e, então, acabou se casando com ela (não precisando que Greg o fizesse). Mas o conflito não estava solucionado com a passagem permanente de Yorkie.
Kelly, apesar de apaixonada, revelou não querer ir permanentemente para San Junipero, preferindo a morte de sua consciência ao falecer. Yorkie, definitivamente, não entendeu por que alguém se recusaria a viver para sempre num paraíso tropical de festas e paz. E só então ela veio a descobrir que Kelly, na realidade, não havia sido abandonada por seu marido, mas sim que ele havia escolhido morrer devido à perda da filha deles. Sim, Kelly havia tido uma filha e, sem ela, não havia sentido viver num mundo perfeito. E, pelo mesmo motivo, seu marido havia optado por morrer sem ir a San Junipero, pois ele não acreditava naquela felicidade virtual/espiritual. Afinal, de que valeria o Paraíso sem os pecadores e incrédulos que amamos? Eis aí o paradoxo da felicidade eterna, o golpe de mestre do episódio.
O interessante é que San Junipero era uma espécie de céu-para-todos-os-gostos. Lá, havia dois lugares para a diversão: o Tuckers (mais “light”, com fliperama, música ambiente etc) e o Quagmire (mais pesado, com sexo explícito, ring de luta, prática de BDSM ao vivo, e por aí vai). Ambos destinados à felicidade e à diversão eternas, um céu ao gosto do cliente. Mas o “x” da questão, de fato, é a mensagem de que o ambiente virtual é preferido por muitos que entram nesse frágil coma social, sustentado por máquinas que podem falhar, a qualquer momento, como a nossa fé no irreal.
No fim, Kelly decide morrer e ficar com Yorkie para sempre em San Junipero. Assim, portanto, termina um dos mais brilhantes episódios de Black Mirror, tecendo um paralelo sobre a preferência do virtual, da crença no mundo perfeito e do nosso coma no mundo real.
“Sem esse lugar, eu nunca poderia encontrar uma pessoa como você.”
No responses yet
Achei este o melhor episódio da série! Com certeza! Mexeu muito comigo quando vi…
É, de fato, comovente.
Mas vc teve uma interpretação positiva ou negativa em relação ao fim que elas tomaram?
Bom, vamos tentar refletir um pouco a questão… Embora eu pudesse responder com um simples “sim” ou “não”…Mas não irei, pois ão vejo a mínima graça faze-lo! rs Então se nosso objetivo aqui é analisar, vamos debater a análise!
Olha, para mim ficou mais do que claro que a vida real de ambas era algo bem próximo do “miserável” comparada com San Junipero… E o modo como o episódio é construído me passou também uma total incerteza na vida após a morte do jeito “tradicional”… Então ao meu ver o único obstáculo era realmente a esperança de Kelly em rever a filha e o marido… Eu no lugar dela sentiria a mesma coisa se fossem pessoas importantes para mim também…
Ao mesmo tempo aquele mundo virtual dava uma esperança maior de continuidade, ainda que dependendo de máquinas como bem citado por você… Então assim ficamos com incertezas em ambas as possibilidades, e ao mesmo tempo (ao meu ver) está em jogo também um PREÇO A SE PAGAR…
Contudo, ao menos uma das possibilidades (San Junipero) Kelly pôde EXPERIMENTAR, sabe que está lá… Ainda que não se saiba por quanto tempo (e ao meu ver no mundo que Black Mirror nos oferece as máquinas talvez não seriam tão passíveis à falhas…rs)…
Bom, então após refletir um pouco mais através de teu artigo, ainda concordo com elas sim… Uma vez que, sobre um possível mundo espiritual pouco se prova e pouco se sabe!
…E talvez mesmo se levando em consideração a idéia (muito boa e coesa) de coma social em virtude da preferência por um paraíso virtual… Pois aqui podemos questionar que se o real oferecesse opções mais agradáveis não haveria tanta gente preferindo o virtual à ele, não é mesmo? Talvez exatamente por isto San Junipero pareça tããão atraente até se comparada com a realidade nossa de cada dia…
Bom, espero ter conseguido me expressar com clareza e um mínimo de coesão…
Abraço e parabéns pelo artigo!
um dos meus episódios favorito