Há pouco mais de um mês, foi anunciado pelo Ministério da Cultura qual filme representaria o Brasil na pré-seleção para o Oscar de melhor filme estrangeiro, e esse filme é nada mais, nada menos do que o aclamadíssimo “O Som Ao Redor”, do cineasta estreante na ficção Kleber Mendonça Filho. Filme polêmico desde o lançamento pelas discussões que causou, “O Som” ganhou reconhecimento mundial ao ser eleito como um dos 10 melhores filmes de 2012 pelo jornal The New York Times.
Se “O Som Ao Redor” merece a estatueta, eu não sei, mas esse filme é bom assim. Dotado de uma ambição rara no grande circuito dos últimos anos, conta a história de moradores de classe média de uma rua em Recife. Todos moram trancados em seus condomínios luxuosos, mas, quando essa segurança é perturbada por um assalto, um pequeno grupo de seguranças se oferece para trazer serviços particulares, causando tranquilidade a alguns e tensão para outros. Enquanto isso, uma mãe de família tem que descobrir um jeito de lidar com o incômodo e barulhento cachorro da vizinha.
É uma história bem simples, que pode até causar o ceticismo a alguns; afinal, como é que um filme de duas horas vai lidar com temas tão inusitados? É aí que entra o grande ás do filme: não existe um padrão narrativo. Claro, os eventos são organizados e definidos, mas muitas das cenas parecem desconexas e a linha narrativa, no geral, parece apenas um monte de cenas e de histórias paralelas aglutinadas. Essa sinopse aí em cima só serve para atrair mesmo, já que esses acontecimentos não representam nem 30% do filme. O principal é mostrar o cotidiano dos vizinhos nas situações mais banais: uma aula de inglês, uma nova namorada, uma reunião de condomínio… mas, nessas mesmas condições rotineiras, somos forçados a ver também o individualismo e outros vícios da vida na cidade. Certas situações não tem nem mesmo um final; aparecem no filme e desaparecem, apenas para mostrar essa rotina muitas vezes contraditória. Como, por exemplo, na cena da reunião de condomínio, os moradores discutem a demissão do porteiro que trabalhou arduamente por mais de 10 anos, mas que por algum motivo começou a dormir em serviço; ao verem o preço da multa da demissão, decidem dispensá-lo por justa causa – isto é, sem indenização, jogando os anos de trabalho no lixo.
Essa é apenas uma das muitas situações que ocorrem ao longo do filme, com seus múltiplos personagens. É o tanto que acontece no filme, mostrando a classe média como ela é, com situações irônicas e engraçadas, e outras simplesmente chocantes por serem tão cruas; não há sangue, não há grande exemplo de violência física, somente pequenas cenas que mostram o quão elitista é a vida na cidade. Outro exemplo é a cena do pesadelo de uma menina: ela sonha que sua casa está sendo roubada; a questão é que os ladrões são vários meninos negros, raquíticos, mal vestidos e claramente pobres. São mais de trinta garotos pulando o muro de sua casa, roubando até mesmo seu colchão. Este rápido pesadelo demonstra a visão que essa garotinha tem do que os “ladrões malvados” devem ser. Momentos depois, há uma cena em que um garoto pobre e negro, subindo numa árvore para invadir uma casa, é obrigado a descer e leva um soco na boca por um dos seguranças, demonstrando a truculência com a qual ele é reprimido – mesmo que seja apenas uma criança passando por dificuldades. Dentre as várias críticas que o filme carrega, a mais forte é a da segregação da sociedade brasileira.
Mas o que mais chama a atenção é o realismo e som, como o próprio título diz. Não existem diálogos bonitinhos e inteligentes como lemos nos livros ou vemos nos filmes – os personagens falam da mesma maneira que nós falamos na vida real, com vícios de linguagem, voz baixa, palavras do dia-a-dia… sem sarcasmo, sem falas engraçadinhas e irônicas dignas de um Tony Stark. É apenas a pura representação da realidade. As atuações são assim também, sem exagero, teatralismo ou rostinhos bonitos. Tudo para contribuir com o clima extremamente realista e simplista do filme. Mas, como eu disse, o maior protagonista é o próprio som. Tudo o que ouvimos, além das vozes dos personagens, é o silêncio, muitas vezes quebrado pelos sons da cidade. Buzinas, latidos, carros. Não há orquestra nem música de fundo, exceto em algumas passagens em que há motivo para tal. Às vezes, um som comum, como um elevador ou ondas do mar, é maximizado para demonstrar tensão e claustrofobia. O próprio silêncio é usado para causar desconforto e uma sensação de sufocamento. “O Som Ao Redor” tem um uso único da sonoplastia. E, consigo, juntamente a sua fotografia perfeita, traz uma reflexão do que é viver na cidade. Tem até uma cena, próxima ao final, em que dois personagens viajam ao campo, e, atormentados com o silêncio, andam pela mata à procura de alguma coisa que faça barulho. Chegam até mesmo a encontrar um cinema abandonado, e simulam um filme, fazendo tocar uma música de suspense antiga numa das raras passagens em que há orquestra. E é por isso que este filme é tão impecável. Experimentando o uso da imagem e do som, “O Som Ao Redor” consegue ser uma experiência única.
O único pecado é ritmo lento, que pode se provar desafiador para alguns. Algumas (poucas) situações tornam-se monótonas. É claro que o filme, como um todo, fica no saldo positivo, mas, para quem não gosta de filmes lentos, pode se provar uma experiência bem desafiadora.
Irreverente, perturbador e realista, “O Som Ao Redor” mostra coisas que às vezes não vemos em nossa própria vida. Um crônica sobre a vida na cidade e nossa sociedade urbana concentradora de renda, o filme reproduz o cotidiano e ainda consegue se elevar ao usar o som como artifício crítico e artístico. Bem disse Lucas Salgado, crítico do AdoroCinema: “não é um filme que precisa ser falado para ser ouvido”. E não é mesmo. Não faço ideia se “O Som Ao Redor” chegará à seleção do Oscar, mas Kleber Mendonça Filho merece reconhecimento pelo seu trabalho, e definitivamente é um talento a se observar.
Nota 9
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3 Responses
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