Chegamos a penúltima parte de nossa “jornada” de resenhas da coletânea ‘As Quatro Estações’ de Stephen King. A primeira parte está AQUI e a segunda AQUI. Os dois contos anteriores, como viemos falando, exploram uma escrita mais dramática e humana de King, sem deixarem nunca de serem boas demonstrações do que o autor faz de melhor, que não é simplesmente terror, mas sim, construir humanos críveis. “O Corpo”, que será resenhado a seguir, é a melhor das histórias apresentadas no livro (mas se você quiser contestar, dizendo que ‘Shawshank’ é melhor, perdoaremos, pois também ficamos divididos entre estas duas peças).
E assim como ‘Shawshank’, ‘O Corpo’ é amplamente conhecido por uma excelente e bem recebida adaptação à Hollywood: ‘Conta Comigo’, de 1986. Talvez o filme não seja tão reconhecido hoje em dia, mas certamente foi o ‘road movie’ de muitos pré-adolescentes dos anos oitenta. Curiosamente, o filme é até citado num game clássico dos anos noventa… ‘Pokémon Red & Blue’, logo no começo do jogo:
Enquanto a clara referência não foi comprovada pela equipe de investigação No Meu Mundo (só pelo autor deste post, mesmo), você pode conferir melhores evidências NESTE post (em inglês), que falam sobre como o filme foi um mega fenômeno no Japão, de onde vieram os amados Pokémon. Mas acho que já desviamos o bastante do assunto… vamos ao que interessa!
‘O Corpo’ conta por que homens não choram – mas deveriam
Quatro amigos de uma cidade pacata partem em busca de um corpo. Afinal, se você é o típico menino de uns dez anos, daqueles que vivia brincando na rua, poderá entender com maior facilidade a fascinação que a aposta de ver de perto um corpo traria. E se não entender, felizmente a escrita amplamente humana de King nesta novela irá ajudar. Mas, quanto a ver um cadáver, talvez você teria medo – certamente alguns dos meninos no grupo tiveram. No entanto, sendo um garoto, não se demonstra tal medo, pois “homens não choram”.
E é este o ponto de partida para uma das histórias mais sensíveis de Stephen King. Se em ‘It – A Coisa’, vemos retrato com igual maestria da infância, em ‘O Corpo’, a ausência de forças sobrenaturais malignas dá espaço para que a humanidade e a inocência brilhem sozinhas.
A novela é narrada como uma memória de um dos quatro garotos, já adulto e anos depois do acontecido, o escritor Gordie Lachance. A nostalgia evidenciada nas palavras do personagem é verdadeira e com descrições que traduzem o fascínio que somente lembranças da infância podem causar; e leitores que talvez tenham chegado aos seus 30 anos, talvez entendam e se impactem mais ainda com a percepção dolorosa de perceber verdades da vida invisíveis às crianças.
“É amedrontador descobrir que alguém, mesmo um amigo, sabe exatamente o que se passa com você.”
A cumplicidade entre os quatro meninos se evidencia numa solidariedade subconsciente, causada por suas dores que os excluem: relacionamentos familiares abusivos, o desamparo de pais ausentes num luto eterno por outro filho que partiu, ser o menino esquisito, dos óculos fundo de garrafa e de saúde frágil…
E num fidelíssimo retrato da masculinidade tóxica, estes adolescentes demonstram atitudes insensatas e negam seus sentimentos – o que é chamado comumente de “garotos buscando seu lugar no mundo”.
Dos quatro jovens, Gordon e Chris são visivelmente os mais próximos. E ambos compartilham o pesado fardo de terem do que a vida guarda para cada um:
“Nunca vou sair desta cidade – disse Chris, e suspirou. – Quando você voltar da faculdade nas férias de verão, vai poder visitar Vern e Teddy, e eu no Sukey’s, depois do turno das sete às três. Se você quiser. Só que provavelmente você nunca vai querer.”
Se as palavras desta resenha estão recheadas duma emoção minha, ao me identificar com estas infâncias, fica a ressalva: nada é contado em tom melodramático, mas nostálgico e, acima de tudo, com um realismo que não se traduz em frieza.
Se você soube enxergar além do terror no excelente ‘It’ para perceber uma história que põe o leitor para pensar no que é crescer, ‘O Corpo’ consegue entregar um resultado melhor ainda. Certamente é uma das melhores obras já feitas por King, e merece ser devidamente apreciada.
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