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Por conta de filmes como “A barraca do beijo” e “Para todos os garotos que já amei”, a Netflix vem se destacando por um bom investimento num gênero que fez muito sucesso entre os anos 90-2000 e  que atualmente parecia esquecido pelo cinema: a comédia romântica. Eu sempre amei as comédias românticas!Filmes como a Nova Cinderela, Ela é Demais, Como Se Fosse a Primeira e De Repente Trinta, eram aqueles filmes que eu simplesmente amava assistir na Sessão da Tarde.

Porém, Felicidade Por Um Fio, é muito mais do que uma simples comédia romântica, onde dividimos o nosso tempo rindo ou chorando pelos mocinhos e então acabou. Isso porque a história de amor dirigida por Haifaa Al Mansour, não se trata apenas de um romance turbulento e cômico entre um homem e uma mulher, mas entre a personagem principal, Violet Jones (Sanaa Lathan) e ela mesma. Basicamente, o filme aborda questões espinhosas como racismo e um  dado padrão de beleza que tem o branco como modelo ideal.

O longa é baseado no primeiro volume de uma série de livros escrita pela autora Trisha R. Thomas e retrata todo o processo de autodescoberta da publicitária Violet Jones, que dentro de uma sociedade racista como a estadunidense, cresceu aprendendo a se envergonhar de suas raízes crespas. Para escondê-las, Violet  tal como muitas mulheres negras, adotou como hábito compulsivo o exaustivo processo de pranchar os cabelos, usar perucas, toucas de dormir, permanente, sem contar toda a sua desconfiança com água, o que por vezes a fazia perder pequenos presentes da vida  como um banho de chuva ou de piscina.

Como consequência de sua traumática relação com os seus cabelos, Violet cresceu sendo uma mulher extremamente perfeccionista com a sua imagem,  a ponto de não ser uma pessoa espontânea e verdadeira em sua maneira de pensar ou se comportar. O ponto de virada da personagem no entanto vem na cena mais catártica do filme, que me lembrou muito a cena de Carolina Dieckmann em Laços de Família, pois como ela, Violet raspa todo o seu cabelo num momento emocionante e impactante.

Daí em diante, uma nova Violet vai surgindo na tela, desconstruindo seus próprios preconceitos e aos pouco tornando-se uma mulher mais livre e solta. Acho que Violet é uma boa alegoria para todas nós, mulheres negras, que passamos diariamente por esse tipo de situação, onde nosso próprio cabelo não é o “tipo ideal” e onde nós mesmas não o enxergamos dessa forma. Todo o processo dolorosos e cansativo que Violet se utilizava para esconder seus cabelos,  são como amarras para o que ela é de verdade ou para o que sempre quis fazer. Quando essas amarras são gradativamente cortadas, vemos uma nova mulher nascer.

Todo esse processo de autodescoberta e autoaceitação ocorre em meio a um triângulo amoroso que eu senti que foi a parte mais fraca do filme, com exceção da mensagem que veio com ele, pois um dos pretendentes de Violet não aceitou muito bem seu processo de transição capilar, mesmo sendo igualmente negro. Achei interessante a crítica que o filme trouxe nesse ponto, pois é aqui que convergem duas questões espinhosas da sociedade atual: machismo e racismo. Se é muito difícil ser mulher na sociedade atual, é mais difícil ainda ser mulher negra dentro desta mesma sociedade. Se por um lado o machismo espera de nós perfeição estética, por outro o racismo faz com que essa perfeição seja notoriamente branca ou que pelo menos tenha traços comuns a ela, como os cabelos lisos, por exemplo.

E como mulher negra, digo que isso acontece com mais frequência do que eu gostaria de admitir. Todo esse racismo historicamente construído faz com que não aceitamos bem o cabelo crespo ou mesmo traços característicos da identidade negra, seja aqui ou nos Estados Unidos. Lembro-me de quando eu fiz minha transição capilar há três anos atrás e um menino com quem eu ficava (negro) me mandou uma mensagem chocado que eu estava usando lenços na cabeça (eu fazia vários turbantes e amava todos eles <3). Ele me disse que não era para eu fazer aquele tipo de coisa (deixar meu crespo respirar em paz), porque eu tinha um rosto muito bonito. (?????). Evidente que a relação desceu ralo abaixo depois disso.

Então em muitos momentos eu me identifiquei muito com Violet. Eu também tinha muitos preconceitos quanto a ideia de assumir meu crespo. Dizia que o que nasceu sendo meu, não combinava comigo. Mas no fundo eu estava inventando desculpas e tinha medo do que as pessoas diriam. Até que não importou mais. Foi um processo muito doloroso, mas valeu cada segundo e nunca mais passo nenhuma porcaria nos meus cabelos.

Todavia, outra temática interessante levantada pelo filme é o papel da mãe de Violet, já que de certa forma, ela foi indiretamente responsável pelo perfeccionismo obsessivo de Violet e da relação que ela tinha com seus cabelos. Veja bem, minha mãe começou a alisar os meus cabelos quando eu era muito nova, quando eu cheguei aos 30, eu não fazia ideia de como era sentir ou tocar no meu próprio cabelo. O mesmo processo acontece com Violet, como acontece como muitas de nós. O processo de negação e apagamento começa dentro de nossas próprias casas. Mas não se pode em momento nenhum culpar a mãe de Violet (infelizmente o filme não trabalhou isso bem e demonizou um pouco a coitada) ela simplesmente faz parte do mesmo sistema discriminatório no qual Violet estava inserida!

Se você está lendo essa resenha e pensa em fazer transição capilar ou mesmo se conhece alguém que está no dúvida e ainda não teve coragem, esse é um bom filme para indicar como autoajuda. Funcionou muito bem aqui em casa. Quando eu fiz transição, minha irmã me criticava, porém fui gradativamente mostrando para ela que não era ruim, que a gente fica mais bonita quando se aceita (meu cabelo é mais do que um cabelo é um ato político hehehe). Hoje ela é uma mulher trançada em transição. E o gatilho foi esse filme. Não por indicação minha, muito pelo contrário, foi ela quem me indicou. O processo pra ela foi tão natural quanto foi pra Violet. Uma hora cansa.

Então mães, se vocês têm filhas, façam como o Will White (Lyric Bent) e não alisem os cabelos das bebês de vocês. Elas irão agradecer quando tiverem idade o suficiente para entender.

Confira o trailer:

https://www.youtube.com/watch?v=EZOwfX3bmzQ

Mione Le Fay é carioca, formada em Jornalismo. Escritora, professora de informática, apresentadora e produtora de eventos. Apaixonada por livros e fotografias, encontra nesses nessas duas artes uma forma de mostrar tudo o que existe em seu mundo.

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