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No post anterior, mencionei que, apesar das similaridades entre os gêneros de romance de época e romance histórico, ambos não são a mesma coisa. Para diferenciá-los, devemos ver como cada um lida com: o enfoque e a instrumentalização na História.

O enfoque (para maiores detalhes, leia o post da semana passada) é o ponto central do enredo. Sobre o que estamos falando? Qual o objetivo principal da narrativa? É contar sobre uma tragédia? Sobre um momento histórico? Sobre uma pessoa real? Sobre um enigma? Se for sobre uma relação amorosa, por exemplo, possivelmente estamos falando de um romance de época.

Porém, apenas o enfoque não servirá para avaliar qual tipo de gênero você está lidando, pois há romances históricos focados numa relação amorosa!

Portanto, é preciso também analisar como o autor utilizou a História para a construção do seu enredo. E eis aqui o pulo do gato, o grande diferencial entre romance histórico e romance de época: a História.

HISTÓRICO E NÃO, CLÁSSICO:

Os estudiosos americanos (sim! iremos falar muito deles nessa coluna) avaliam que uma narrativa pode ser considerada histórica quando o seu enredo ocorre 50 anos (ou mais) antes do momento da escrita. Para melhor exemplificar: se hoje (2020) eu escrevo uma história passada em 1960 ou 1970, já pode ser considerada histórica. Isso pode soar estranho (para mim, inclusive), mas é assim que são criadas as estimativas de gênero.

E é comum, inclusive, as pessoas confundirem uma narrativa histórica com um Clássico. Para saber diferenciar, basta conferir quando o autor daquela obra nasceu e quando foi escrita. Muitos clássicos escritos no século XIX são contemporâneos ao seu século. Por isso, Jane Austen é um clássico e não um romance de época ou histórico. O que não é o caso de Sir Walter Scott, o pai do romance histórico; ou de Alexandre Dumas e os seus mosqueteiros…

Pegando o exemplo dos Clássicos, podemos afirmar que: há clássicos que podem ser narrativas históricas, mas nem todo Clássico escrito em outra época é uma narrativa histórica.

Digamos que você tem um livro em mãos e já avaliou quando nasceu o seu autor e quando ela foi escrita. Identificou que é uma narrativa de cunho histórico. Leu o enredo e parece ser sobre a relação amorosa entre duas pessoas. Você está diante de um romance de época? Ou será um romance histórico com enredo romântico? O que vai diferenciar aqui é, então, a maneira como a História vai ser trabalhada.

COMO A HISTÓRIA É CONTADA NA HISTÓRIA?

Essa pergunta parece brincadeira de criança, mas ela é fundamental para entendermos a implicação da História na narrativa e suas correlações, e como ela pode ser “complexa” em alguns casos.

Ao examinarmos a História nos romances históricos, observamos que ela é uma “personagem” importante no enredo (tão importante que o termo está na nomenclatura do gênero!). Não se trata apenas de um cenário de fundo, ou dos costumes de uma determinada época. A História, nesse caso, tem e deve ter um papel central no enredo e de uma maneira tão fundamental que não teria como retirar aquele enredo daquela época e construí-lo em outra. Por exemplo, um drama num campo de concentração, ou a espionagem na época de Elizabeth I, a Rainha Virgem, ou sobre a colonização das Américas e o primeiro encontro com os grupos indígenas, ou o terremoto de Lisboa no século XVIII.

Existem “histórias” na História que são tão complexas, que não poderiam ocorrer em outro momento senão naquele, pois há toda uma gama de relações na “construção daquela situação histórica” que não vemos em outro ponto da linha do tempo da humanidade.

Porém, nem todo romance histórico é feito em cima de grandes fatos históricos. Há também romances históricos que não lidam exatamente como momentos históricos e sim, com pensamentos históricos. Isabel Allende, Gabriel Garcia Marques, Ana Miranda, Alberto Mussa, entre outros, são autores que, por exemplo, mostram a construção de um ideal, ou de uma maneira de pensar propícia a uma época e o que será a base e a causa de todo o enredo (e desenredo). Esse tipo de romance histórico (e que eu amo, por sinal) está mais preocupado em mostrar como as pessoas de uma determinada época e lugar pensavam e como aquilo levou a situações, ações e reações coerentes com o seu momento histórico.

Esse olhar mais intimista da História, inclusive, se aproxima bastante da maneira como ela é usada nos romances de época, mas, neste caso, espera-se que o final deva ser feliz, enquanto no romance histórico, a felicidade nem sempre é o objetivo do enredo. A meta do romance histórico é demonstrar o que poderia acontecer se algumas escolhas fossem feitas numa situação histórica e dentro dos parâmetros da época em si.

Enquanto a História é personagem fundamental no enredo do romance histórico (seja na maneira de pensar e agir das personagens, seja no fundo histórico), no romance de época ela é instrumentalizada de outra maneira.

Teoricamente, como os romance de época lidam com narrativas românticas, em que a história do casal é o ponto central (o enfoque), portanto, o espaço para a História se restringe bastante se compararmos com o espaço que é dado no romance histórico. Ou seja, a História é diminuída para dar lugar a história do casal.

Em outras palavras, a História passa a ser apenas um pano de fundo para a história principal que é o romance. Tanto que não é esperado que o autor de romances de época se perca em descrições de costumes, roupas ou lugares, nem que mantenha os pensamentos coerentes com o momento histórico, ou mostre questões políticas ou econômicas que poderiam afetar o enredo. Não! A História, no caso dos romances de época, é cenário e não, personagem como nos romances históricos.

Para complicar, há autores (como eu) que gostam do entre-lugar dos gêneros e que fazem abrir a discussão se estamos diante de um romance de época travestido de histórico, ou vice-versa. Nesses casos, a análise do enfoque da narrativa e da instrumentalização histórica deve ser ainda mais minuciosa para que se consiga medir os pesos da aplicação da História na história, e vice-versa.

Não posso falar exatamente sobre qual é o intento por detrás dos enredos de autores tais como Philippa Gregory, que romanceia personagens históricos, mas posso afirmar que, no meu caso, a ideia do entre-lugar é trazer um pouco de História e do pensamento histórico e moldá-los dentro dos parâmetros do romance de época e, assim, dar ao leitor a chance de também conhecer um pouco de História.

Resumindo, a instrumentalização da História, isto é, como ela vai ser usada dentro do enredo e da narrativa do romance, é o que será o diferencial (junto ao enfoque) entre um romance histórico e um romance de época. No entanto, não devemos esquecer que haverão autores que ficarão brincando nas margens dos gêneros e que isso é a graça da Literatura.

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Mione Le Fay é carioca, formada em Jornalismo. Escritora, professora de informática, apresentadora e produtora de eventos. Apaixonada por livros e fotografias, encontra nesses nessas duas artes uma forma de mostrar tudo o que existe em seu mundo.

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