Categories:

Capitalismo X Socialismo – Quem é que vence no final da primeira temporada de 3%?

O mundo tá muito errado. É injusto que só 3% – TRÊS POR CENTO – da população tenha uma vida maravilhosa graças à pobreza, à miséria de todo o resto. Alguns aceitam essa injustiça, só que outros, não. Outros lutam e é nisso que eu acredito.” – fala de Rafael para Fernando.

“Você é criador do seu próprio mérito. Vai dar tudo certo, porque você merece” – fala de Ezequiel na abertura do processo.

E aí, você já tem um lado? Já escolheu o seu? Ou você tinha um lado antes e acabou mudando ao final da primeira temporada da série? Essa escolha é definitiva? De fato, no decorrer dos episódios, o telespectador é jogado ora para a direita, ora para a esquerda, podendo (ou não) ter tido sua convicção balançada em alguns momentos.

Para quem não assistiu (ou já assistiu há muito tempo e não se lembra dos detalhes), 3% é a história que mostra que o mundo está dividido em dois lados, um lado farto e um lado escasso. Entre os dois, é feito um processo seletivo, com candidatos aos 20 anos de idade, para que, dentre eles, sejam escolhidos os novos integrantes do estrato social privilegiado. Contudo, uma vez eliminado, o candidato jamais poderá ter uma nova chance de participar do processo de seleção. No entanto, para aqueles que forem aprovados, o paraíso os espera numa ilha de prosperidade, paz, harmonia e abundância, chamada Maralto (ou “lado de lá” – para ser bem sugestivo). E é no ano 104 do processo que a série inicia sua primeira temporada.

Logo no início, os candidatos são recebidos pelo administrador do jogo, Ezequiel, que, já em seu discurso de abertura, deflagra sua descrença no socialismo utópico e seu combate a forças antagônicas ao sistema dos processos seletivos. Ele diz: “A falsa e hipócrita igualdade busca destruir o que conquistamos”; e prossegue: “você é criador do seu próprio mérito. Aconteça o que acontecer, você merece”. Já nesse momento, Ezequiel faz menção à Causa, que é um grupo revolucionário que luta pela igualdade e que é totalmente contra os 3% privilegiados e todo o processo seletivo envolvido em sua escolha. Mas e você? Quantos processos seletivos você vai ter que passar na vida para alcançar o lugar que você quer?

Assim que o processo se iniciou, revelando-se de extrema direita, algumas situações, ocorridas com certos personagens (incluindo protagonistas), foram bem curiosas no decorrer da entrevista inicial, merecendo aqui um destaque. A primeira situação foi a que o personagem negro e cadeirante, Fernando, é avisado de que não há politica de inclusão nas provas (sem cotas, traduzindo para a nossa realidade presente). O entrevistador, ainda, questiona-o se ele estava tentando o processo para deixar de ser “um peso na vida do seu pai“, que é um pastor, apresentado pela série de maneira medíocre e que prega que o “lado de lá” é o verdadeiro Paraíso. Por fim, após testar e ferir o orgulho de Fernando, a resposta final aceita foi quando ele admitiu: “eu quero passar pro lado de lá pra não ter uma vida igual à dele [a de seu pai]“. Já outra personagem, também negra, chamada Joana, é indagada sobre quando havia lavado pela última vez o seu cabelo – certamente, o entrevistador queria inferir que seu blackpower estava demasiadamente maltratado, desgrenhado e, provavelmente, até mesmo, mal cheiroso – mas ela não esmoreceu, respondendo: “[eu lavei meu cabelo] da última vez que tive água para desperdiçar”. Daqui, podemos tirar várias reflexões sobre esse futuro, que tanto se parece com o nosso presente, devido a problemas de distribuição de água potável, saneamento básico e outras questões, tais como o preconceito social, racial, etc. Muitos paralelos podem ser feitos.

Enfim, muitos candidatos já ficam reprovados logo nessa primeira triagem; um deles, inclusive, até se mata – tamanha é a pressão social pelo sucesso do processo (não muito diferente da pressão das nossas provas de ingresso nas universidades, nossas provas escolares e acadêmicas, os concursos públicos etc). É claro que muitos também conseguem a ascensão de maneira desonesta, como foi o caso de Rafael Moreira, que passa na fiscalização, mas que, na verdade, tem sua identificação fraudada – o retrato da ascensão através da corrupção. Além disso, ele ainda rouba em uma das primeiras provas do jogo, a prova do cubo; o curioso foi que, mesmo todos sabendo da sua trapaça, ele, ainda assim, passa adiante , mostrando que há níveis de corrupção, implicitamente, aceitos. Não obstante, o burburinho não foi evitado e Rafael, num dado momento, questionou por que todos cochichavam sobre ele ter roubado se, hipocritamente, ninguém teve a coragem, em contrapartida, de fazer algo em favor do rapaz excluído por causa dele. E, tempos depois, a propósito, outra colega de jogo também veio a roubar, desta vez na prova das moedas, passando adiante.

Um dos pontos altos da série foi quando, na prova em que a comida parecia ser escassa, o jogo virou e o “favorito” mudou seu comportamento. Ele e seu bando terminaram usando da força para roubar a comida dos mais fracos. Por ser um Álvares – nome da família com suposto alto índice de aprovação no processo, – ele se achava superior, parte da Elite. Enquanto isso, Rafael – aquele que havia roubado na primeira prova – acabou se mostrando solidário aos demais. “E a verdade se revela.” – disse Ezequiel após ter manipulado a prova para que isso acontecesse.

Ainda sobre as provas, uma das últimas delas consistiu em oferecer dinheiro para os candidatos caso eles quisessem parar de jogar (tipo um Jogo do Milhão), podendo ter, também, a opção de prosseguir arriscando perder tudo e sair sem nada. É claro que a série não poderia deixar de fora a questão do risco, pois o risco é o princípio do juro e ele pressupõe uma remuneração para quem arriscou. Mas foi a protagonista Michele quem estava apostando todas as suas fichas no jogo…

Isto porque ela estava lá para vingar a suposta morte de seu irmão – história que lhe havia sido contada por um líder da Causa, que a recrutou para o grupo, fazendo-a infiltrar-se no jogo, a fim de ajudar na “revolução” dos pobres em busca de igualdade. Mas Michele acabou se excedendo e terminou tentando envenenar Ezequiel, que foi quem supostamente havia assassinado seu irmão. Já tendo sido capturada e torturada, Michele recebe a “visita” do administrador do jogo e, surpreendentemente, Ezequiel mostrou para a garota que seu irmão estava vivo e bem no Maralto e que ela havia sido manipulada pela liderança da Causa. E, em outra virada magnífica da série, Ezequiel acabou fazendo uma revelação bombástica:

Eu era da causa, Michele, mas felizmente eu abandonei essa ideologiazinha infantil há muitos anos. Você acha que está lutando contra todas as injustiças do mundo e que, destruindo o processo, você terá igualdade. Mas a verdade é que não existe nem heróis nem vilões, nem injustiçados nem desigualdade, porque a gente sabe que existe uma única diferença entre as pessoas: as que têm mérito e as que não tem. E ponto.” Depois, continua: “Michele, eu já estive aí na sua exata posição e eu só cheguei onde cheguei porque passei pelos dois lados e acabei escolhendo o lado certo. Só alguém assim pode ter a convicção plena das coisas…” Nesta fala, exemplificam-se os milhões de casos dos esquerdistas dos movimentos estudantil e sindicalista que, depois de uma ou duas décadas, passam a vestir terno e gravata e cortam a imensa barba para serem promovidos.

Mas, afinal, a Causa é ou não é uma organização criminosa?

Apesar de algumas mortes injustas na conta dos infiltrados da Causa, há, por outro lado, incursões policiais nas periferias, mostrando que a polícia dos 3%, nesse futuro, também mata civis inocentes. E é nesse momento da série, em que, na sala de monitoramento da operação, mostrou-se a personagem Júlia ficando abalada com toda essa situação, tendo sua tristeza somada aos estresses da organização do processo. Júlia acabou apresentando um quadro de depressão, terminando com um tratamento que lhe foi recomendado – apesar de seu marido, Ezequiel, ter dito não ser necessário. Ela própria dizia que não havia nada de errado com sua saúde psíquica, mas fica claro para o expectador que Júlia estava, claramente, no início de um quadro depressivo. Motivo? Simples: o gatilho para sua depressão foi que, para ter a sua vida de primeiro mundo, ela precisou se afastar do seu filho – e podemos inferir várias coisas sobre isso: uma delas é que a depressão, independe dos privilégios que o Maralto oferece, podendo configurar uma crise ideológica no sistema dos 3% (pois todos não deveriam estar felizes do lado de lá?); outra: as exigências do mundo capitalista parecem cada vez mais afastar os pais dos seus filhos no dia a dia. Assim, ela se mata no Maralto, sendo o primeiro caso de suicídio da história deles.

Em meio a todos esses elementos, tais como infiltrados da Causa no jogo, torturas – que fizeram lembrar os tempos de ditadura no Brasil, com direito a pau-de-arara, – mortes causadas pelos dois lados da moeda, pastor que prega todos os dias por dinheiro, sistema de saúde precário para a população mais pobre, corrupção no lado dos ricos, etc; no fim, independentemente dos simpatizantes da Causa, a impressão que fica é a de que a população em geral almeja e, culturalmente, incentiva e aprova a ascensão (mesmo quando ela é suja), podendo o fracasso representar um estigma durante o resto suas vidas (mesmo quando se é honesto). Fica claro na série que o “ter” é mais valorizado que o “ser”.

Contudo, somente nos últimos minutos da temporada é que se deu o golpe de mestre. Veja ou relembre as palavras de Ezequiel:

Vocês estão aqui para um ritual de purificação. A purificação tem como função limpar vocês de um grande mal da sociedade. Essa vacina esteriliza. Sugiro que vocês devam estar se perguntando o porquê (eu também estava, há mais de 20 anos) antes de aprender a ver o mundo do jeito certo. (…) nós não temos filhos no Maralto, exatamente porque a hereditariedade foi a maior injustiça que sustentava o absurdo do mundo em que vivíamos. E esse foi o maior feito do casal fundador, o maior ensinamento: eles foram os primeiros a não terem filhos e nos ensinaram que o grande guia para a construção de uma sociedade superior é o mérito. E a única maneira de avaliar o mérito real é o processo, porque vocês sabem que com certeza conquistaram os privilégios, lutaram e merecem. E aí não há espaço para dúvida, pra culpa e pra tristeza. E agora eu tenho prazer de estar entre vocês (…). Vocês são os nossos filhos do Maralto”.

Voilà! Finalmente obtivemos a resposta para a nossa pergunta do começo, “Quem é que vence no final da primeira temporada de 3%?”. Resposta: ninguém. O sistema do Maralto acusa a hereditariedade como a grande injustiça, não só do capitalismo, como de todos os sistemas que já existiram, mostrando que o problema não era se esforçar, ter mérito ou evoluir, mas sim repassar todos os benefícios extraídos para as gerações seguintes sem que elas tivessem feito qualquer coisa para já nascerem em berço de ouro e que, por outro lado, impedir a evolução por meio de uma igualdade falsa e hipócrita não era a solução, pois prejudicava a evolução. Em outras palavras, ao final, nem o Capitalismo nem o Socialismo venceu, mostrando que, numa visão mais hobbesiana, o problema não era dos sistemas, mas sim dos homens, que são, por natureza, egoístas e hostis.

Aproveitando, vale lembrar que dia 27 de Abril estreia a 2ª Temporada de 3% na Netflix, abaixo você confere o trailer dessa nova temporada.

 


 

Mione Le Fay é carioca, formada em Jornalismo. Escritora, professora de informática, apresentadora e produtora de eventos. Apaixonada por livros e fotografias, encontra nesses nessas duas artes uma forma de mostrar tudo o que existe em seu mundo.

No responses yet

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *