- Autor: Lemony Snicket
- Ano de publicação: 2001 (primeira edição de 1999)
- País de origem: Estados Unidos
- Título: Mau Começo
- Título original: Bad Beggining
Para quem assistiu “Desventuras Em Serie” em filme, e pensar que por isto não precisará ler o livro homônimo, estará cometendo um simplório engano. Além de a série possuir treze volumes ao todo, a história que nos é entregue por Lemony Snicket – que segundo ele mesmo está incumbido de nos relatar as desventura da família Baudelaire – possui sutilmente outro viés, perceptível apenas em sua narrativa escrita que nos apresenta grande qualidade reflexiva.
Há alguns trechos em que a narrativa explica o significado de alguns termos menos usuais empregados na escrita, o que cria um clima ao mesmo tempo irônico ao mesmo tempo didático em alguns trechos da narrativa, mesclando bem as duas coisas. Além das ilustrações lindas e lúdicas ao longo das páginas de modo a nos lembrar de que estamos diante de um livro classificado como infanto-juvenil, apesar de eu pessoalmente verificar que se trata de muito mais que isto.
Algo que não posso deixar de destacar é o incentivo à leitura colocando o amor aos livros como característica principal na personalidade de um dos personagens principais, que facilmente vemos representado como um jovem leitor voraz: Klaus Baudelaire. Aliás, o modo como as três crianças protagonistas são descritas merece uma menção à parte, pelo modo como é destacada sua singularidade sem que nenhuma das personalidades – e suas peculiaridades – seja posta em hierarquia ante as outras.
Além do já citado amante da leitura – que inclusive se utiliza de tal peculiaridade para lidar com enrascadas aparentemente sem solução ao longo da história – temos Violet Baudelaire sendo descrita como uma jovem inventora, interessada em engenharia e uma adolescente que valoriza mais a engenhosidade de seu cérebro do que sua aparência, apesar de ser descrita como privilegiada em ambas as características. E por fim temos ainda a bebê mordedora Sunny Baudelaire, que nunca é deixada de fora dos diálogos de um modo inteligente, convincente e sem que sua participação seja infantilizada ou menos importante para o enredo que seus irmãos mais velhos.
Interessante mencionar que toda a narrativa é recheada de maravilhosas ironias, e possui uma carga interessante de crítica social às leis instituídas que é feita de madeira mordaz ao longo da narrativa, e incentiva em muitas passagens a reflexão por parte de quem lê, sendo ao mesmo tempo um texto suave e prazeroso. Ainda sobre o texto notei também que “aquilo que parece ser, geralmente é”, e o narrador chega a brincar um pouco com estas “primeiras impressões”.
As infelicidades cotidianas dos irmãos Baudelaire e os infortúnios que se seguem desde a notícia da morte dos pais num misterioso incêndio, tais como as tentativas de adaptação à uma nova vida totalmente diferente daquela que levavam anteriormente, o encontro com o desprezível Conde Olaf e as sujas tentativas de seu sórdido guardião em tentar lhes roubar a futura herança, do modo como são contadas nos faz notar que criticam especificamente aos processos de adoção e o poder absoluto dado à guardiões legais por ordens jurídicas, muitas vezes independentemente do real caráter destes guardiões.
Ao conjunto das muitas passagens de caráter mordaz observáveis encontramos uma logo na nota de capa, à qual reconhecemos ainda mais como um brilhante contrassenso à medida da leitura do livro… Refiro-me à seguinte passagem: “Sinto muito dizer que o livro que você tem nas mãos é bastante desagradável. Conta a infeliz história de três crianças muito sem sorte.” – O que certamente foi feito para não ser considerado literalmente, mas para atiçar ainda mais a curiosidade de leitor.
O visível descaso de todos os adultos aos órfãos e seus problemas mais cotidianos e peculiares beira o absurdo, e também demonstra o caráter crítico da narrativa. Então voltamos às ironias quando notamos que a única a se importar com eles verdadeiramente é uma Juíza chamada (ironicamente) de Justice, mas que descobrimos ao longo dos capítulos ser absurdamente abobalhada como alguém em tal profissão não seria. Contudo não falarei mais a respeito para evitar Spoilers e permitir que quem venha a ler confira por si como tal questão se desenrola e se de fato possui relevância.
Talvez a maior das verdades irônicas referente ao supracitado livro seja uma curiosidade não mencionada ao longo da história, o fato de que Lemony Snicket é tão somente mais um personagem, sendo um pseudônimo do autor, cujo o verdadeiro nome seria Daniel Handler. O próprio nome da família protagonista pode-se identificar como clara referência inspirada em Charles Baudelaire, que em sua época era frequentemente apontado por sua excentricidade (o autor de “As Flores do Mal”).
Inclusive ao pesquisar mais sobre tal assunto fiz uma descoberta curiosa, até então inusitada a mim, e que certamente vale compartilhar aqui: o fato de que a tal Berenice mencionada na dedicatória de uma das primeiras páginas seria ninguém menos que a mãe dos órfãos Baudelaire, a qual o tal Lemony amava em segredo, apesar de ela ter se casado com outro. Segue a foto da dedicatória citada, a qual fiz questão de preparar para ilustrar esta resenha:
Eu poderia ainda citar as vezes em que ao longo da leitura torcemos enfaticamente pelos Baudelaire ou sofremos com eles, mas para evitar os temidos Spoilers terminarei este texto citando um dos trechos que mais me afetou, e que demonstra a qualidade reflexiva da narrativa do livro:
“Às vezes o simples fato de você dizer que detesta alguma coisa e ter alguém que concorda com você pode ajudá-lo a suportar uma situação horrível…”
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Vi o filme e a série e só tinha ouvido comentários sobre o livro, qiero procurar pra ler deve ser tão incrível quanto o filme!
https://tripascoloridas.wordpress.com
Sim, de fato é! Porém, como citei na resenha, a atmosfera é bem DIFERENTE! Se assemelha mais à série, mas é claro que uma obra LIDA não se compara à uma ASSISTIDA! São dois universos distintos… Grata pelo comentário!
O livro é um conto?