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Alguns críticos consideram que estamos numa espécie de “era de ouro da televisão”. Isso por que, nos últimos 10 anos, tivemos um número de séries que entraram para a história da programação televisiva com imensa facilidade: “Lost”, “Breaking Bad”, “Mad Men”, “Game Of Thrones”, e, dentre as que poderão futuramente figurar esta lista, temos ainda as novatas “True Detective”, “Hannibal” e “Orphan Black”, que vem colecionando prêmios e aclamação de crítica e público. Mas eis que surge um novo meio de transmissão: o streaming do Netflix, que garantiu séries fantásticas nos últimos dois ou três anos. A internet pode até não figurar na tal “era de ouro televisiva”, por motivos óbvios, mas, quando o produto de seus esforços é uma série do naipe de “Orange Is The New Black”, é impossível negar que estamos, sim, diante de uma era única para as séries e os telefilmes.

“Orange Is The New Black” é uma comédia dramática de humor negro sobre Piper Chapman. Piper é a típica americana branca, de classe média alta, da alta sociedade de Nova York. Ela tem uma boa vida, um noivo de boa família, faz dietas e receitas que vê na televisão e organiza pequenos atos cotidianos (como, por exemplo, levar sacolas para o mercado) para salvar o meio ambiente e ajudar os pobres. Um dia, entretanto, Piper recebe a notícia que será presa. Isto por que, dez anos atrás, ela cometeu um crime ao lado de sua então namorada, Alex Vause, que a dedurou para a polícia. Agora, ela terá que deixar todos os seus planos de lado e se adaptar ao difícil cotidiano da prisão feminina – e perceber que existem coisas mais importantes na vida do que paz e estabilidade.

“Orange Is The New Black” não só é uma das melhores séries no ar da atualidade, como também é uma das mais essenciais. A série se dedica a nos fazer rir das situações mais inapropriadas, ao mesmo tempo em que choramos pela terrível vida das detentas. Mesmo sendo uma comédia de primeira linha, conseguindo arrancar muito mais risadas que qualquer série veterana de onze temporadas por aí, “Orange Is The New Black” ainda é um soco no estômago, sensível, cruel e revoltante. “Orange” critica duramente os valores da sociedade norte-americana (e, por consequência, também de toda a civilização ocidental), mostrando todo o preconceito, os maus tratos e as crueldades que não só da prisão, como da sociedade inteira.

Os temas principais de “Orange” são a sexualidade feminina – que é sempre reprimida pela sociedade machista – e a desigualdade social, mostrando que há, sim, grande pobreza nos Estados Unidos, mas que, como em qualquer lugar do mundo, o sistema tende a ignorar e reprimir. A série choca ao mostrar, com tanto realismo, todas as situações que as detentas são obrigadas a passar num sistema carcerário falho: o abuso (físico, emocional e até sexual), a violência e os preconceitos, a maioria por parte dos guardas, que mandam e desmandam em tudo independentemente do fato daquelas pessoas ali serem humanas. De fato, um diálogo, próximo ao fim da temporada, faz questão de remarcar: “Estas mulheres não são pessoas. Pense nelas como gado”. Os guardas são uma clara metáfora às elites americanas: brancos, conservadores, de classe média e heterossexuais, eles reservam todo tipo de tratamento abusivo para aquelas mulheres, muitas das quais negras, muitas das quais lésbicas, muitas das quais pobres, muitas das quais indefesas ali dentro, lidando com os próprios demônios e com os demônios dos outros, com o arrependimento e os fantasmas dos crimes que cometeram, alguns muito graves. Os guardas conduzem tráfico de drogas, cobram sexo em troca de favores, condenam as detentas a castigos desumanos por motivos tão fúteis quanto uma dança entre amigas e encobrem estupros e mortes. Tudo com base naquela típica visão de família americana: branca, conservadora, de classe média e heterossexual.

Outro tema recorrente nesta temporada é identidade. Enquanto Piper se adapta à realidade da prisão, ela tem que se encontrar novamente. Quem ela realmente é? Ela é essa mocinha elitista de Nova York, ou é uma mulher forte e independente que domina as próprias vontades e o próprio sexo? Quais são seus reais valores? É isto que ela teme, e é esta a escolha que ela terá que fazer. Similarmente, outras detentas passam por dilemas parecidos, tendo de resolver suas vidas e sempre se perguntando: “esta é realmente quem eu sou?”

Dentre os poucos problemas desta temporada quase perfeita, está somente o ritmo de desenvolvimento de determinados episódios (mais especificamente, o quarto, o quinto, o décimo e a finale), que se arrastam com histórias desnecessárias e só se recuperam a dez ou vinte minutos de acabarem. Mas mesmo estes probleminhas são completamente ignoráveis perto do carisma não só de um, mas de TODOS os personagens, que fogem de qualquer caricatura. As personagens lésbicas estão longe de caírem no clichê da “mulher-macho”, assim como as deficientes mentais mostram que não são definidas por suas condições; os mocinhos não são tão bonzinhos e os vilões, mesmo sendo absolutamente repugnantes e odiáveis (com destaque para Mendez, o guarda abusivo, Healy, o diretor preconceituoso e Dogget, a detenta fanática religiosa) demonstram humanidade em certos momentos. Nenhum personagem é uma caricatura, nenhum personagem é exagerado. Todos demonstram que são seres humanos, não importa o quão bons ou o quão maus são, e, por isso, é impossível não amá-los – ou odiá-los.

“Orange Is The New Black” é um hino pela força da mulher e das minorias da sociedade ocidental. Com uma crítica social ácida e um roteiro afiado, “Orange” consegue ser engraçadíssima e ao mesmo tempo chocante. É uma das séries mais essenciais da atualidade, justamente pela sua crítica pesada, sarcástica e extremamente cruel sobre desigualdade social e sobre como as elites e a classe média tendem a julgar e condenar pessoas mais pobres. “Orange Is The New Black” é um tapa na cara de quem acha que “bandido bom é bandido morto”, e um soco no estômago de quem esquece que, por trás de cada ato, existe dor e humanidade. Pesada e assustadora, mas sem jamais esquecer do bom humor, “Orange Is The New Black” é aquela série que todo mundo deveria assistir. Hoje. Agora.

Nota: 9/10

P.S.: se vocês acham que Joffrey, de “Game Of Thrones”, é um dos vilões mais cruéis de todos os tempos, claramente ainda não conhecem Mendez, Healy e Dogget.

Mione Le Fay é carioca, formada em Jornalismo. Escritora, professora de informática, apresentadora e produtora de eventos. Apaixonada por livros e fotografias, encontra nesses nessas duas artes uma forma de mostrar tudo o que existe em seu mundo.

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