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“No século XIX, Adam Ewing é um escravista insatisfeito, obrigado pela família a viajar num navio pelas Américas. Em 1933, o jovem e talentoso compositor bissexual Robert Frobisher ajuda o também compositor, já idoso e doente, Vyvyan Ars, na esperança de compor sua própria obra. Em 1975, a jornalista Luisa Rey conhece Rufus Sixmith quando o elevador em que ambos estão quebra, e ele revela que estão encobrindo uma série de falhas no projeto de construção de um reator nuclear. Em 2004, Timothy Cavendish é dono de uma pequena editora, que lançou um livro que dificilmente dará retorno financeiro. Entretanto, a situação muda quando o autor do livro mata um de seus críticos, tornando-se uma celebridade instantânea. Nova Seul, 2144. Sonmi-451 é um clone que trabalha em um restaurante fast food, programada para realizar todo dia as mesmas tarefas, sem manifestar qualquer reclamação, mas tudo muda quando outro clone acaba, sem querer, despertando-a sobre sua existência. Num futuro pós-apocalíptico, vive Zachry, o líder de uma tribo. Sua vida muda quando Meronym, que integra um grupo evoluído chamado Prescientes, lhe pede para viver com sua tribo. Seis histórias que, apesar de ocorrerem em épocas e países distintos, possuem uma interligação. Passado, presente, futuro: tudo está conectado.”

Faz somente alguns meses que o filme “A Viagem” ganhou grande espaço nas redes sociais, assim como muitas super-produções “alternativas” tem feito com auxílio do Facebook. Quando digo alternativas, quero dizer aqueles filmes de grande orçamento almejando o grande público, porém com raízes no cinema cult e com uma premissa nem tão simples para que qualquer um acompanhe. É fácil de perceber isso, afinal, a reação geral de crítica e público foi bastante dividida – o que deve-se muito ao fato de muita gente não ter entendido bem o filme.

Mas falemos um pouquinho do livro em si: Cloud Atlas, publicado em 2004 pelo britânico David Mitchell, que, apesar de ser um premiado Best-seller e considerado um visionário com apenas 5 romances publicados, não ganhou o público fora das terras britânicas. Sendo assim, o livro jamais foi lançado no Brasil; apenas no fim de 2012, com o lançamento do filme, ganhou uma edição em Portugal, que, caso interesse a você que está lendo agora, pode adquirir por só 80 reais e esperar 8 semanas como muitíssimo humilde tempo de espera para a entrega. Eu mesmo adquiri o livro em inglês. Muitas livrarias (ao menos no Rio de Janeiro e em São Paulo) têm o livro no estoque, e o preço não passa de 30 reais na edição econômica. Porém, o problema para aqueles que não são fluentes em inglês é justamente o problema que muitos tradutores ao redor do mundo encontraram: o livro é considerado intraduzível. O porque disso? Leia a sinopse novamente; o livro se passa em 6 épocas diferente, das quais duas são ambientadas no século XIX e no inicio do século XX, tempo em que expressões difíceis e muitíssimo formais eram utilizadas, e outras duas são ambientadas num futuro mais ou menos distante. Sendo assim, essas duas épocas tem uma mitologia própria, uma tecnologia própria e até mesmo uma gramática própria – lembrando que a história ambientada em 2321, “Sloosha’s Crossin’ An’ Ever’thin’ After”, se passa num mundo pós apocalíptico onde simplesmente não existem escolas, o que significa: não existe gramática. A leitura é realmente um desafio, mesmo para o fluente.

Mesmo assim, indico o livro para toda e qualquer pessoa – jovem, idoso, fã de fantasia ou de ficção cientifica ou de drama. Se vocês forem fluentes, comprem o livro em inglês; se não forem, comprem o livro de Portugal, mesmo sob as desanimadoras condições de exportação, ou procurem em ebook. Indico por que este é simplesmente meu livro favorito de todos os tempos, num nível emocional/criativo de grandes obras como Os Miseráveis, O Iluminado ou 1984. Por que? São muitos os motivos.

Para começar, a estrutura do livro é diferente de tudo que você já viu. O livro conta cada uma de suas histórias até a metade, parando subitamente num momento essencial (deixando em aberto o tão temido “gancho”), e, quando chega na última história (“Sloosha’s Croosin’ An’ Ever’thi’ After”), vai contando o resto de cada história, só que na ordem inversa. Ficou confuso? É assim mesmo, difícil de explicar; falando de uma maneira mais ou menos simples, a ordem de narração das histórias seria assim: 1-2-3-4-5-6-6-5-4-3-2-1. Dessa maneira, durante a primeira metade do livro, nós conhecemos e nos identificamos com os personagens, para na segunda metade acabarmos destruídos, animados, felizes, tristes, chorando, enfim, emocionados com cada história. Falaremos novamente sobre isso mais tarde.

Agora, o por que de eu indicar esse livro para todo mundo? Por que, no final de suas 500 páginas, você sente que leu um épico gigantesco, um marco na literatura geral. Afinal, você não está lendo uma só história, está lendo seis. E cada uma dessas histórias envolve um gênero diferente da literatura moderna: “The Pacific Journal of Adam Ewing” (1850) trata-se de um drama histórico sobre Adam Ewing, um homem que bate de frente com questões sociopolíticas como escravidão; “Letters from Zedelghem” (1933) trata-se de um drama romântico sobre Robert Frosbicher, um homem perseguindo seus sonhos de tornar-se músico e separado de seu amado, pois, naquela época, uma relação homossexual era um escândalo; “Half-Lives: The First Luisa Rey Mystery” (1975) é um suspense policial sobre Luisa Rey, uma mulher que enfrenta uma conspiração para evitar um desastre nuclear; “The Ghastly Ordeal of Timothy Cavendish” (2004) é uma comédia sobre Timothy Cavendish, um velho editor que, depois de ser ameaçado por ladrões, vê-se preso por engano num asilo cheio de cuidadores abusivos; “An Orison of Sonmi-451” (2114) é uma ficção científica/distopia sobre Somni-451, uma fabricante (que é outro nome para clone) lutando contra um governo totalitário para a libertação de outros clones; e “Sloosha’s Crossin’ an’ Ev’rythin’ After” é uma aventura pós-apocalíptica, ambientada após um holocausto nuclear, sobre Zachry, um homem que deve guiar uma forasteira misteriosa por uma montanha para enviar um pedido de socorro para qualquer nação que continue de pé, enfrentando no caminho tribos inimigas e até mesmo o diabo.

Entenderam o que eu quis dizer? Não importa de qual gênero você seja fã, este livro tem uma história para você; e mesmo que você não goste de romance policial, ou de comédia, o livro te envolve por sua genialidade simples. Isso por que cada história tem um estilo próprio, que vai sendo descoberto ao longo do livro. Por exemplo: a primeira história é contada em forma de diário, por que este diário vai ser lido pelo personagem da segunda história; e a segunda história é contada em forma de cartas, por que essas cartas vão ser lidas pelo personagem da terceira história; a terceira história, por sua vez, é contada em forma de livro, com divisões em capítulos e tudo, por que esse livro vai ser lido pelo personagem da quarta história; e assim vai até o fim. Resumindo: Cloud Atlas é um livro sobre 6 histórias, e uma história está dentro da outra. Isso dá uma interessante visão teórica, pois remete diretamente à teoria do caos, que dita, em palavras vulgares, que uma pequena ação no presente pode ter uma enorme consequência no futuro. Um exemplo disso é que Somni-451, a clone da quinta história, é considerada uma divindade pelas tribos da sexta história.

O que isso tudo quer dizer? Que, estruturalmente, Cloud Atlas é um marco para a literatura. É difícil encontrar, na literatura do mundo inteiro, um livro tão intrincado, tão perfeitinho quanto à forma. Cloud Atlas brinca com a narração; propõe um estilo alternativo, ao narrar 6 histórias (cada uma de uma maneira, seja cartas, diário, narração comum, enfim) e colocar uma dentro da outra. Para vocês verem, passei já duas páginas falando somente sobre o formato do livro e ainda assim não consegui explicar de maneira fácil toda a complexidade, todo o marco que esse livro representa. Isso não significa que o livro seja difícil de entender; pelo contrário, é facílimo, bastante simples (ao menos para mim foi, mas vamos lembrar que eu estava tão viciado que li em somente 4 dias, então, cada uma das 6 histórias estava gravada à fogo em minha memória). Mas é obra de imensa criatividade, e tem um valor literário inestimável, que, infelizmente, ainda não ganhou o reconhecimento que deveria fora do Reino Unido. Muito disso se deve à falta de público – afinal, Cloud Atlas tem uma atmosfera cult que espanta os leitores que procuram por grande agitação – e também à dificuldade de tradução, que já citei e explanei acima. Mas, ainda assim, é um crime que ao menos uma editora não tenha se interessado em trazer uma obra dessa qualidade para seu acervo. Se muitas editoras publicam clássicos mundiais, mesmo sem perspectiva de grande lucro, é um desperdício não publicar Cloud Atlas, principalmente nesta época em que o filme ainda está sendo muito discutido na comunidade cinéfila.

Bem, passei todo este tempo falando sobre a estrutura e técnica do livro. Mas e a história de verdade, que é o que mais interessa à maioria? Bem, não posso liberar spoilers à vera aqui, afinal, meu objetivo é fazer vocês se interessarem por este livro maravilhoso. Mas posso falar do que mais marca a gente quando folheamos a última página e colocamos o livro na estante.

O que fica é um vazio imenso. Quando fechamos o livro, sentimos que ele não deveria ter acabado. Vocês já devem ter acompanhado alguma saga que acabou e te deixou “órfão”: para alguns foi Harry Potter, Jogos Vorazes para outros, Crepúsculo, Academia de Vampiros… Mas a maioria acompanhou estas sagas por três ou mais anos, chegando até a mais de dez! Agora imagine ficar com um sentimento desses ao acabar um livro que você está lendo há somente 4 dias. Um sentimento de que foi muito bom pra ter acabado, que aqueles personagens vão ficar pra sempre com você… Imagine! Um marco tão grande, um envolvimento tão grande que parece que você conhece aqueles personagens há anos e anos…

Muito disso se deve aos temas do livro. Cloud Atlas retrata a condição humana, nossas lutas do dia a dia… todas as histórias, se analisadas a finco, tratam de personagens com problemas, sejam pessoais, políticos ou sociais, lutando para conseguir liberdade. Liberdade de ser feliz; de amar; de salvar; de viver; de encontrar seu lugar, um lugar melhor. Liberdade de ser livre. Cloud Atlas é uma viagem pela humanidade: por cada ação, cada gentileza, cada ambição, cada amor, cada vida. Cada ato aqui, em nossa mera estadia no mundo mortal, que vai alterar completamente passado, presente e futuro. Cada violência, que destrói tudo e todos, desferida por pessoas cruéis que também são capazes de amar!

É uma história que você não deve procurar sentido, que você não deve ver como algo linear, que simplesmente não tem explicação! Cloud Atlas não é a história que você lê e processa, que você usa seu cérebro. Você lê para sentir. Você lê sem procurar aquela explicação lógica que envolve o mundo. É um livro para se sentir, para você se sentir junto – se sentir humano, mortal, quebrável. Se sentir mais próximo de seus iguais, de família e amigos. Fé, esperança, amor… você sente esperança ao terminar o livro! Olha só! Esperança de felicidade! Esperança de encontrar sentido nessa vida efêmera, nos problemas do dia a dia – não sentido lógico, mas sentido para o coração!

Esta é uma odisseia sobre o ser humano. Um épico filosófico que te faz pensar na vida, que te faz vê-la de maneira diferente; que te faz pensar na morte, e ver que não é tão ruim assim. Pois a vida perdura para sempre, assim como seus atos, como nossos amores. E as vidas, nossas vidas, não são só nossas: são de todos que tocamos. São definidas por cada ato que cometemos, cada maldade e cada gentileza que irá definir nosso passado e originar nosso futuro. Cloud Atlas é um livro simplesmente lindo, profundo e arrebatador, para se pensar por noites e mais noites a fio. Para chorar, rolar de desconforto, e rir. Rir alto, rir com vontade, pois, ao fim do livro, sabemos que, mesmo com toda sua irrealidade e ficção, Cloud Atlas é mais vivo do que muitas pessoas por aí, tristes e sozinhas, procurando sentido em coisas que não foram feitas para pensar! Desperdiçando chances de amar e ser feliz! Cloud Atlas é, em sua totalidade, uma explosão de vida; uma memória viva do que nós somos, do que nós criamos. Nós não somos mais do que uma gota num vasto oceano, mas, afinal, “o que é um oceano senão uma multidão de gotas?”

OBS: Percebam que não falo muito sobre o filme nesta resenha, até por que não este não é o foco. Sobre ele, tenho apenas alguns comentários: é um tantinho diferente da fórmula do livro, já que, no livro, as histórias são contadas em forma de 1-2-3-4-5-6-6-5-4-3-2-1, e, no filme, são contadas as seis ao mesmo tempo. Mas, sim, é um filme lindo, beirando à perfeição; sim, é um filme arrebatador, que te deixa extasiado e desconcertado. Mas, assim como o livro, é um filme que você não encontra sentido lógico. Como são seis histórias diferentes ao longo de três horas, deve-se prestar bastante atenção pra não se perder. Mas, ao final, o resultado é uma explosão emocional, tal qual o genial porém subestimado “Fonte da Vida”, de Darren Aronofsky, que trata de temas semelhantes. É preferível ler o livro antes de ver o filme, pois aí fica mais fácil de acompanhar a história; mas, se você preferir ver o filme direto, só deve prestar um pouquinho mais de atenção, pois o maior crime que se pode cometer com um filme desses é não entender o real significado, o real sentimento que ele está tentando passar.

ATUALIZAÇÃO: Recentemente, a Companhia das Letras adquiriu os direitos para publicação de Cloud Atlas. Sim, o livro vai ser publicado no Brasil! Resta esperarmos para ver como será feita a tradução, afinal, não é nem de perto um trabalho fácil, principalmente para este livro.

Mione Le Fay é carioca, formada em Jornalismo. Escritora, professora de informática, apresentadora e produtora de eventos. Apaixonada por livros e fotografias, encontra nesses nessas duas artes uma forma de mostrar tudo o que existe em seu mundo.

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  1. Sem dúvida um dos melhores comentários que já li, infelizmente ainda faço parte dos que ainda não são fluentes a ponto de ler uma obra literária e estou esperando muito mais do que ansiosamente por essa tradução da Companhia das Letras! Vi o filme e simplesmente me apaixonei, não gosto de comparações entre livros e seus respectivos filmes, pois acredito que cada meio (a literatura e o cinema) tem ferramentas diferentes, mas se eu já estava com vontade de ler, depois do seu comentário vou me revirar de ansiedade haha.

    • Bruno, você acabou de dizer tudo o que penso! Também acho que cinema e literatura são meios diferentes e que tem de se esforçar pra serem bons a seu próprio jeito, sem faltar com respeito um com o outro. Exemplo, Harry Potter, que é infiel porém passa o mesmo sentimento; e Percy Jackson, que é infiel e além de ser uma péssima adaptação é um péssimo filme, super Sessão da Tarde, clichê, batido, enfim, o típico de um filme que se vendeu pra fazer sucesso. Com Cloud Atlas não tem isso: o filme muda algumas coisinhas sim, mas passa o mesmo sentimento lindo do livro.

  2. caramba, que resenha incrível! assisti o filme ontem e fiquei muito intrigada com ele, felizmente me atrasei um pouco e consegui um pdf em português, pois não sou fluente em inglês. Vou começar a ler agora mesmo! Depois volto pra dizer o que achei. Gostei muito da resenha, obrigada.

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